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Li alguns contos da Alice Munro e...

E essa passou a ser uma das minhas escritoras favoritas (acho que já posso dizer isso)!

Fiquei muito encantada pela forma como Alice escreve e nos envolve em suas histórias. 

Ela tem um jeito lindo de narrar construindo imagens facilmente em nossa cabeça. Ela inicia cada conto já nos inserindo em um universo, nos apresentando a situações com muita clareza. Mas ela não entrega tudo de uma vez. É aos poucos, com detalhes que devem ser captados por entre os acontecimentos.

E não fui só eu que achei isso. Essa foi a leitura proposta para o mês de janeiro do Leia Mulheres aqui de Santa Cruz - contos de Alice Munro, sem um livro específico - e no último fim de semana nós nos reunimos pra falar sobre eles. Foi então que as outras participantes também comentaram sobre a facilidade em mergulhar nas histórias, de imaginar as personagens.

Aliás, as personagens valem outro parágrafo porque elas também nos impressionaram muito. A autora traz uma diversidade grande em suas histórias. No Fugitiva tem três contos que são inter-relacionados (Ocasião, Daqui a pouco e Silêncio), porém, tirando esses que intencionalmente giram em torno de uma mesma personagem, os demais são muito variados nesse aspecto.


Elas são desde jovens até idosas, pessoas ricas, pobres, intelectualmente desenvolvidas ou nem tanto assim, pessoas lembrando o passado, pessoas vivendo o presente, vivendo conflitos e com emoções muito humanas aflorando. Pessoas mais caridosas e pessoas bem egoístas. Então também são histórias repletas de humanidade.

Mas há algo que liga todas elas: as narradoras são sempre mulheres (pelo menos nos contos que lemos). E esse é outro ponto importante. Porque todas as histórias criadas por Munro, de alguma forma, trazem muito do que é ser mulher nesse mundo. São problemáticas que poderiam ser de décadas atrás, mas que também dos dias de hoje. São a realidade, as dúvidas, as dores, os desafios, as durezas e também os encantos e os privilégios de ser mulher que estão ali. 

Com muita profundidade

Veja um trechinho:

"[...] era assim que se esperava que as garotas fossem. Era isso que os homens - as pessoas, todo mundo - achavam que elas deveriam ser. Bonitas, valorizadas, mimadas, egoístas, de miolo mole. Era isso que devia ser uma menina, era por isso que alguém devia se apaixonar. Então ela ia virar mãe e ia ficar toda piegas dedicada aos filhinhos. Não ia mais ser egoísta, só ia ter miolo mole. Para sempre."

Tem um outro trecho do segundo conto que não me saía da cabeça mesmo horas após a leitura. A personagem estava menstruada e quando foi ao banheiro do trem, deixou marcas de sangue no vaso sanitário. Para seu desespero, quando ela foi puxar a descarga descobriu que, como o trem estava parado, se ela puxasse a descarga naquele momento, os resíduos de sangue seriam despejados no lado de fora, onde pessoas poderiam estar passando. 

Então ela decide esperar dentro do banheiro, o tempo que fosse necessário - o trem tinha parado por questões técnicas - porque ela não suportava a ideia de alguém entrar depois dela, ver o sangue e talvez até saber que era dela e que ela estava menstruada.

Em outro momento ainda, depois de conhecer um homem no trem, ao se despedir dele ela acaba falando, sem que houvesse qualquer necessidade, que ela era virgem, pensando por um segundo que assim desencorajaria o homem a querer qualquer relação mais íntima, porque afinal ela estava menstruada. Naturalmente depois ela se deu conta de que nada teria acontecido e que foi só o pânico, mais uma vez, relacionado ao fato de que alguém pudesse saber de sua menstruação. 

Sem falar nos momentos em que ela se preocupa com a roupa, se poderia estar manchada de sangue ou não e precisa ir conferir, caminhando de forma a tentar esconder qualquer mancha possível.

O conto nem é sobre isso. Ele vai muito além. Esses são só mais alguns acontecimentos. Mas ainda assim estão ali, presentes na vida daquela personagem, interferindo em suas ações. Como já deve ter acontecido com todas nós em algum momento das nossas vidas. Tirando-lhe a segurança, dando-lhe um fardo a mais para carregar. 

Por tudo isso, ler Munro é sentir-se na pele, pelo menos um pouquinho, de todas elas. Ou talvez se reconhecer, pelo menos um pouquinho, em cada uma delas. É observar o mundo pelos seus olhos e refletir a respeito daquilo que gostamos ou não gostamos tanto assim em nós mesmas. E nos aceitarmos, sobretudo, porque somos mesmo muito diversas.

E eu nem comecei a falar dos cenários em que essas histórias se passam. Aqui temos outra riqueza. Um mixa de cidade e campo, vilarejos de veraneio à beira de grandes lagos, extensas florestas, montanhas e rios, lugares quase mágicos que podem ser vistos da janela de trens ou da varanda de casas de verão.

Assim, pra nós ficou mais do que explicado o Nobel de Literatura que ela ganhou em 2013. E sem sombra de dúvida fica aí uma autora que eu super recomendo pra todo mundo daqui pra frente! E uma autora que quero ler mais.

Registro do encontro do Leia Mulheres SCS de janeiro, que ocorreu no sábado, 29 de janeiro.


Filme baseado nos contos

Outra coisas que foi comentada no encontro e que eu não sabia, e por isso mesmo achei interessante trazer aqui pra vocês, é que há um filme do Almodóvar inspirado justamente naqueles três contos inter-relacionados do Fugitiva que eu citei mais acima. 

O filme se chama Julieta, foi lançado em 2016 e eu ainda não assisti, mas quero fazer isso em breve. Vou deixar o trailer aí abaixo, pra quem quiser saber um pouco mais também.



Sobre a Alice Munro

Alice Munro é uma contista, ou seja, sua escrita é, predominantemente de contos. Ela nasceu em 10 de julho de 1931, na comunidade de Wingham, em Ontário, no Canadá. Em sua juventude, estudo na Universidade de Western Ontario, onde conheceu seu marido Michael Munro - seu nome antes do casamento era Alice Ann Laidlaw. Para pagar os estudos ela fazia trabalhos manuais.

Alice Munro - Créditos: Divulgação/Companhia das Letras


Em 1951 ela e o marido se mudaram para Vancouver, logo após o casamento, e ela ficou lá, com ele e três filhas, até 1972, quando se divorciou e voltou para sua província natal. Em 1976 ela voltou a se casar, com Gerald Fremlin. 

A partir ela passou a dedicar-se à carreira de escritora, que tinha iniciado anos antes, ainda na década de 1950, com crônicas, ainda que sua primeira publicação oficial tenha se dado apenas em 1968 - Dance of the Happy Shades

Entre suas influências na escrita, de acordo com a própria autora, estão grandes escritoras, como Katherine Anne Porter, Flannery O’Connor, Carson McCullers e Eudora Welty, bem como de James Agee e William Maxwell. 

Como suas narrativas centram-se nas relações humanas analisadas através da lente da vida quotidiana ela acabou ganhando também o apelido de "a Tchekhov do Canadá", em alusão ao grande escritor russo Anton Tchekhov. 

Por causa de sua qualidade, hoje ela é considerada uma das principais escritoras em língua inglesa e foi agraciada com o Prémio Nobel da Literatura em 2013.

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