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In memorian

Santa Cruz do Sul perdeu, no último fim de semana o maior incentivador da leitura que eu tive o prazer de conhecer e também um escritor. Aliás, pra mim, o melhor de todos, porque era ele o meu avô. Pensando em homenageá-lo, e também em manter viva a memória dele, eu escrevi algumas coisas. É uma espécie de carta, eu diria. Uma mensagem para ele. Uma mensagem de aniversário, aliás, porque nessa quarta-feira, dia 11 de setembro de 2019, ele estaria completando 83 anos. Segue abaixo.



Oi Vô, 

Não faz muito tempo que tu desencarnaste e nós todos ainda estamos digerindo a tua partida desse plano material para o plano espiritual. Desde cedo, porém, eu senti dentro de mim uma necessidade muito grande de falar sobre a pessoa que tu foi, de te homenagear. Porque fostes grande, gigante na verdade, de espírito, de coração e de pensamentos.

Para muitas pessoas tu eras o professor. O foste profissionalmente durante muitos anos, quando eu ainda nem sonhava em existir. Mas foste também no dia a dia até o fim da tua vida. Ensinavas àqueles que estavam a tua volta instintiva e naturalmente. Me lembro de uma noite, na sala da tua casa, quando eu brincava de alguma coisa sem muita importância. Eu devia ter, sei lá, uns 5 ou 6 anos, e repeti alguma palavra em inglês que eu tinha ouvido em algum lugar. Tu estavas sentado ali perto, no sofá, e não demorou muito pra que tu me ensinasses mais algumas palavras, me fazendo perceber que algumas delas eram bem parecidas com aquelas em alemão que a gente ouvia a vó falar o tempo todo. Além disso, os nomes de frutas, plantas e principalmente de pássaros que eu conheço, aprendi todos contigo. Assim como o uso de alguns chás e de algumas plantas medicinais. 

Também aprendi mais contigo sobre história do que com qualquer outro professor. Sobre as ditaduras e o nazismo, não conheci ninguém que conhecesse mais do que tu. Lias o tempo inteiro sobre isso né, vô?! E algumas coisas tu também sabias por experiência própria, por ter sentido na pele, por ter tido que “sumir das vistas”. Ainda sobre história, falavas muito sobre a história das religiões e gostavas de nos abrir os olhos para os absurdos de alguns eventos do passado e do presente. Tinhas tantos livros sobre isso. Aliás, tinhas um escrito por ti, inclusive. O As Sete Chaves do Código Galileu Galilei. E então chegamos no escritor que tu foste pra outras tantas pessoas. Não poderia ter sido diferente. Autodidata, apaixonado pelo conhecimento e por essa coisa de nos mostrar a verdade, tu eras um professor e uma enciclopédia ambulante, como não compartilhar um pouco do que tu sabia com os outros, né? E o teu livro, fruto de uma vida de pesquisas, me rendeu não apenas uma carga enorme de conhecimentos, mas também de experiências. Eu nunca mais fui a mesma. 

Talvez eu nunca tenha te dito vô, mas foi ali que nasceu em mim o meu lado jornalista e o meu lado pesquisador. O meu lado que quer mostrar ao mundo a verdade das coisas. Trancada no meu quarto, desenvolvi alfabetos em códigos só meus, comecei a escrever, e pra esconder os escritos, criei enigmas parecidos com aqueles que eu encontrei no teu livro. Quem quisesse ler algo meu, precisaria desvendar aquilo tudo. Comecei a ver o mundo com um olhar mais desconfiado, mais crítico. Adquiri um certo tom de ironia pra falar de certos assuntos. Busquei outras leituras. Comecei a crescer intelectualmente e descobri que eu gostava disso. Tu me deixaste incrivelmente instigada. E eu me tornei uma fã tua transformando em pesquisa cada frase dita por ti. Aí eu tinha então, algo em torno dos meus 13 ou 14 anos.

Mas o gosto pela leitura é ainda mais antigo. Minha lembrança mais remota de ti, vô, é com um livro na mão. Passei minha infância (minha vida, na verdade) inteirinha te vendo com um livro na mão. Contavas historias pra mim, claro, mas sobretudo me incentivavas a buscar minhas próprias leituras. Também me destes tantas e tantas coleções de livros desde o momento em que eu aprendi a ler. Me lembro com carinho especial dos livros do Francisco Marins, da Coleção Taquara Poca. Acho que foram minhas primeiras leituras. Também lembro daquele volume dos Contos de Andersen que depois eu passei pra Yasmin. Todos eles chegaram às minhas mãos através das tuas. E me lembro da bibliotecária da escola onde eu estudei nos meus primeiros anos me elogiando, porque eu adorava retirar livros assim como o meu avô. Não sabia de onde ela te conhecia e isso pouco me importou, mas senti tanto orgulho daquele comentário. Sim, eu era como meu avô. E queria ser cada dia mais. 

Então eu sempre ia até a tua casa com algum livro na mão. E tu sempre, infalivelmente, me perguntava o que eu estava lendo. Nos primeiros anos foram comentários incentivadores. Depois, comentários que agregavam à leitura. Mas um dos melhores dias da minha vida foi quando cheguei com um livro intitulado “Papisa Joana”. Isso foi algum tempo depois de ter lido o teu livro e então tu me disseste que aquele (o Papisa Joana) tu não conhecias, e perguntou se eu o emprestaria pra ti. Minha nossa! Não imaginas o que isso significou pra mim. Depois disso, trocamos muitos livros. Alguns tu me deste para sempre. Para sempre eu os terei comigo para ler e reler e tocar na páginas que tu tão avidamente tocaste antes de mim. Aliás, outro dos meus dias mais felizes foi quando, uma vez, tu disseste que estavas dando a mim todos os teus filmes e livros, porque sabia que eu os guardaria com o mesmo amor com que tu os guardara até então. Essa foi a maior honra já concedida a mim. 

Para outras tantas pessoas tu também foste um lutador político. Acho que as palavras escritas pela mãe no dia em que partiste dizem bem isso, então vou compartilhá-las aqui: “Um lutador das desigualdades sociais até o fim dos teus dias nesse plano. Um comunista no sentido mais amplo da palavra, que soube despertar em mim, e suas netas e tantos quantos que conviveram contigo a disposição de fazer deste mundo desigual e turbulento um lugar melhor para se viver”. É isso, vô. Desde que me entendo por gente e muito antes disso, sempre fostes posicionado politicamente. Sempre ao lado dos trabalhadores. Sempre ao lado dos menos favorecidos. Sempre ao lado da liberdade. Sempre tendo em mente “Liberté, Egalité, Fraternité”, o lema da Revolução Francesa que tu também adoravas. Eras tu um revolucionário. E nos ensinaste a sê-lo também. A não aceitar tiranos. A lutar contra a injustiça. Muito obrigada. 

Mas isso, além de uma consciência política, vinha também de uma grande consciência espírita. Porque pra muitas pessoas eras também o Odilon Espírita. Trabalhou e frequentou várias casas e colaborou muito com a doutrina, especialmente com sua divulgação. Essa, aliás, imagino eu, foi uma das tuas missões aqui no plano terrestre. Durante muitos anos mantivestes espaços nos jornais da cidade, falando sobre o Evangelho de Jesus sob a luz do Espiritismo, levando-o a tantas e tantas pessoas. Também fizeste a divulgação entre os teus mais próximos, levando contigo para as casas espíritas da cidade as tuas filhas, sobrinhas, netas, entre outras pessoas. E em relação a isso, vô, sou grata também. É graças a isso que hoje me sinto tranquila em relação a teu desencarne. É graças a isso que sei que vamos nos encontrar outra vez. 

Mas até aqui, falei das tuas personalidades públicas, daquelas que as pessoas conheciam. Quero dedicar, porém, algumas linhas àquela pessoa que eu conheci no privado, ao pai e avô que foste, ao homem que eras dentro de casa, no íntimo. É claro que essas personalidades públicas me afetaram muito e ajudaram a formar a minha personalidade. Isso já ficou muito claro pelo que escrevi até aqui. Mas nada disso me tocaria sem o teu amor, que também era (ainda é) o maior do mundo. Aqui fica cada vez mais difícil escrever... no dia a dia, no tempo da minha infância, lembro que tu gostavas de ouvir as notícias no rádio, deitado na tua cama, depois do almoço. Também nunca vou esquecer que tu estavas sempre assistindo filmes sobre história e documentários variados. Além disso, tu tinhas muito, mas muito amor pelos animais. Aliás, aí no plano espiritual, acho que vários estavam esperando ansiosamente por ti e eu diria que, muito especialmente o Scooby, teu último pet querido, que amavas demais, demais. Dê um beijo nele por mim. E outro no Benjamin, e outro no Bolinha, e claro, um no Kiko também. Dê um beijo em cada desses bichinhos que tivemos e que tu me ajudou a cuidar com todo o amor. 

A lembrança mais intensa de todas, porém, sempre vai ser do teu hábito de caminhar. A passos largos, sozinho, olhando pra rua como quem pensa na vida. Tinhas um jeito muito característico de caminhar. E estavas sempre caminhando. Tenho na minha memória uma noite de verão em que tu saíste e eu fui atrás de ti. Tu gostavas de caminhar sozinho, eu sei, mas não te importou muito da companhia repentina. Não fomos muito longe. Logo adiante nos sentamos na muretinha do vizinho e ficamos ali, tomando um ar. Tinha um vento leve, agradável. Não lembro se falamos algo. Lembro que estávamos ali, eu e tu. Depois eu fui até a grama que havia em frente à casa desse vizinho (não havia grades na época), enquanto tu me assistias brincar. Depois voltamos pra casa. Aquela não foi a única ocasião em que isso aconteceu. Gostávamos de fazer isso nas noites de verão. Tu sempre que podia dava as tuas escapadas, enquanto a vó assistia uma ou outra novela, e eu não perdia a chance de te seguir. As noites de verão, o vento batendo no rosto e os silêncios eram todos nossos. 

Talvez por isso eu goste tanto de caminhar hoje. Me traz boas lembranças, de bons momentos. Também aprendi a gostar desses silêncios que tu tanto gostavas. E de pensar na vida durante uma boa caminhada. Assim, em mais um aspecto eu me tornei parecida contigo. Por isso, não é de estranhar que tu foste a pessoa com quem foi mais fácil pra mim conviver. Tu foste a pessoa com quem eu mais tive afinidade nessa vida até aqui. Praticamente tudo que eu sou, o sou por tua causa, por querer seguir teu exemplo, por aprender contigo. E nem tenho como agradecer por isso, vô. Aliás, mais que vô. Foste mais meu pai do que meu pai biológico. Mais meu pai do que qualquer outra pessoa. 

Tu sempre tinhas um afago, um gesto ou um toque de carinho. Tu chegavas em casa e me via, e sempre tinha algo a dizer, uma brincadeirinha, um passar a mão na cabeça. “Querideza”, tu dizia, quando me via. E nunca negou esforço nenhum pra me ajudar ou mesmo pra me fazer a vontade. Até os últimos dias da tua vida tu quis nos ajudar, queria ser útil de alguma forma. E sempre tudo estava ótimo pra ti, aliás até as enfermeiras do hospital comentavam sobre o quão tranquilo tu eras em relação a tudo. Tu nunca reclamaste de nada, nem mesmo nesses últimos tempos mais difíceis e olha que sabíamos o quanto tu prezavas o teu cantinho, o teu silêncio, e mesmo sem isso, tudo estava bom pra ti. Vivias com a maior das simplicidades e essa é uma das lições que eu ainda preciso aprender. 

Enfim... no teu velório e nos dias que se seguiram, conversando com as pessoas que encontramos e que vieram nos abraçar, nós percebemos o quanto todos lamentaram a tua partida. O quanto todos tinham algo de bom, bonito e legal pra falar de ti, mostrando que o teu legado é muito maior do que poderíamos imaginar. O quanto as pessoas te gostaram. O quanto aprenderam contigo. O quanto gostavam de conversar contigo ou de te ouvir contar tuas histórias. 

Percebemos, vô, que pra todas as pessoas foi uma honra imensa ter te conhecido. Por isso, a honra de ter sido criada por ti e ter convivido contigo por 26 anos é algo que não cabe em palavras. Nem mesmo nas palavras eu te amo muito e muito obrigada por cada minuto ao teu lado. Espero, ao fim da minha vida, olhar pra traz e poder dizer que consegui ser pelo menos 1/10 do que tu foste em tua vida terrena e continuará sendo sempre pra nós. Espero ser uma “querideza” à tua altura. Feliz aniversário, vô. Ai no plano espiritual todos comemoram a tua chegada, enquanto a gente, aqui, vai se enchendo de saudades.  

Sempre tua,
Lu.

Enfim, encerro dizendo ainda que nada mais será igual e que eu poderia ficar aqui horas e horas falando de ti, vô. Quase tudo o que eu faço, me faz lembrar de ti. Nenhum chima mais será igual porque eu amava tomar chima contigo. Mas tudo bem, isso é só mais uma prova da nossa incrível ligação de amor. 



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